Tão lindas eram as rosas brancas que adornavam seus cabelos pálidos. Olhava-a como quem admira uma arte. Uma mão segurava a dela, a outra traçava a face alva circulando-lhe olhos, testando a maciez das maçãs, contornando-lhe os lábios com uma imensa saudade. As horas passaram, as pessoas passaram e cautelosamente observaram a contemplação ali exposta. Só quando as velas foram acesas, iluminando a moldura de madeira, que se deu conta da branquidão de sua pele, uma estátua de mármore repousando em veludo vermelho. Fria, como o mármore. Logo, chegara a noite e tudo naquele recinto parecia ser feito de gelo. Mais um figurão compareceu cumprindo seu dever social, nem se dera conta de quantos já haviam aparecido. Em porcelana fina era servido o café. Uma mão lhe afagou o ombro oferecendo-lhe o que beber, mas recusou sem retirar o olhar do cetim derramado na sua frente. As memórias vagarosamente foram lhe cercando, um sorriso marfim, um olhar falante, um andar bailarino, coisas que a pertenciam. Altivez, ela também tinha isso. A mente ficou perdida por breves instantes nas lembranças, o murmurinho de vozes o desconcentrou e aí percebera que os rostos que o encaravam agora já não eram os mesmos da manhã. Também notara algo mais, não havia visto uma criança sequer. Claro. Ninguém traria uma criança para presenciar o fim de um anjo. E foi se concentrando em detalhes que não vira desde que entrara no local. Símbolos sacros, a cruz dourada com Jesus Cristo pregado nela lhe chamou atenção, também havia coroas de rosas, faixas, e mais velas. Agora enxergara melhor as pessoas e foi odiando cada uma das faces. Odiando os olhares, odiando os pesares, odiando a presença. E num acesso de puro ódio expulsou a todos, atirou os arranjos, apagou as velas até restar somente a ele, a defunta e a escuridão. Ninguém lhe roubaria aquele momento. O breu foi consumindo o quarto e apenas um feixe vindo da janela aberta iluminava, clareando só o corpo deitado. Por vezes o vento adentrava e balançava a mortalha jogada numa cadeira, era o único movimento visto. O preto passou a cinza e a madrugada foi mais sombria do que a noite. A beleza já estava se esvaindo, a pele ficando arroxeada embaixo dos olhos, e assim como as flores ela parecia mais murcha. A dor apertou seu peito por saber que os vermes a tocariam e a terra a preencheria. Três batidas fracas soaram na porta, não era a morte que viera buscá-lo como pedira, era a hora dela partir. Pedira ao Deus Cristão que o levasse, pedira a tantos deuses, demandou até ao diabo e arrependeu-se na mesma hora. Não era para o inferno que ela iria, mesmo se ele existisse, ela não iria para nenhum lugar ruim. Caronte a daria o melhor lugar na barca. Hades jamais deixaria sua alma vagar nos campos da danação. Ela não esperaria no purgatório. Se tudo isso fosse verdade... Se ele pudesse trazê-la de volta... Se pudesse trocar sua vida pela dela... Mas o que lhe sobrou não foi vida, não suportaria a vida sem ela, e egoisticamente, não suportaria a vida dela sem a sua própria. Uma troca não seria o bastante. Queria ir com ela ao céu, queria ir com ela ao inferno. Queria-a, e só. Assim como os irmãos Castor e Polúx, desejaria a vida no Olímpo, e a suportaria no submundo, se junto dela estivesse, e ficaria satisfeito. A mortalha foi colocada, as alças douradas suspensas, duas fileiras de homens vestidos de preto a carregavam. Véus e mantos de graúnas acompanhavam o desfecho. O caminho foi curto. O padre foi breve. Não houve choro, não houve discurso. Ele somente observou o movimento do caixão sendo abaixado na profundidade. E mesmo doendo-lhe segurou a pá e sujou a madeira branca esperando que a terra tomasse conta daquele corpo que um dia lhe pertencera.
C. Sarah