Que tristes os caminhos, se não fora a mágica presença das estrelas.
( Mário Quintana)

sábado, 20 de agosto de 2011

Memória

Ás vezes você se perde pensando tentando resgatar um momento da sua vida que te deixou feliz. Ás vezes a lembrança é traidora e aumenta mais do que deveria ser, te deixa confusa, saudosa. Porque a memória tem câmera lenta, luz especial, imagem em alta definição, e todo tipo de efeito, só pra você querer voltar naquele momento de qualquer jeito.  Aí você mergulha na cena, os seus olhos ficam vidrados, nada está sendo visto, tudo esta sendo pensado. Há ecos do lado de fora e dedos estalando nos seus ouvidos para tentar fazer você acordar, mas você nem liga. O único som que você realmente escuta está dentro de você mesmo, na sua cabeça. Sim, a realidade é aquela. E você tem o direito de se perder por lá. Você analisa os detalhes, ressaltando as cores, fazendo o instante, repetidas e repetidas vezes. De repente, o acontecido não basta e você resolve melhorar a cena. Isso. Você se torna o seu próprio diretor. “E se eu tivesse feito isso?”, “Se tivesse dito aquilo?”, “E se fosse noite ao invés de dia?”, você pensa, recriando tudo e deixando a cena ainda mais perfeita. Você se vê bonita, porque teve a melhor maquiagem que alguém poderia fazer. Ou então, você se vê confiante, pois trazia a certeza de que tudo iria ocorrer bem. E a cena finaliza impecável. Só que o seu coração não acelera como deveria. Nem você sente o sorriso de prazer e alívio brotar nos seus lábios porque deu tudo certo, você o sabia desde o início. E já não era a sua memória trabalhando, mas a sua imaginação.  Então você percebe que nada deveria ser mudado, porque a memória que você guardava já era feliz demais, talvez a mais feliz de todas. A imaginação está sempre criando e recriando tudo e você não pode impedi-la de fazer isso. Mas aquela memória, você vai querê-la imutável, para revivê-la sempre que tiver vontade de ser feliz outra vez. 



C. Sarah

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Só pra constar...


Abri o baú com as cartas que eu havia jurado estarem mortas há tanto tempo. As palavras estavam lá, manchadas e fracas, enquanto eu me desfazia num esforço inútil para tentar entendê-las. Os versos ainda rimavam tão tolos e decadentes, as sensações é que estavam erradas agora. O tempo faz coisas incríveis, perceptível ou imperceptivelmente. Palavras são só palavras quando tudo se vai e apenas elas ficam. No final das contas as cartas mortas viraram lembranças que já não me dizem mais nada.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Riso estéril


Gargalhos em meio a noite. Abraços perdidos no caos e os braços estão recolhidos. Tocam, mas não aconchegam. A vela tremula, faz sombra: são lábios tão cheios, macios. Vazios no fundo da alma. Vazio no copo de vinho.  

sábado, 12 de março de 2011

Insônia


 Os olhos circulam; o quarto, a paisagem; o escuro emoldura; a parede, a imagem. O teto encara; o relógio percorre; a aurora trepida; e a insônia não passa. A cama inverte; o lençol embola; o corpo se vira; a mente não pára. O vento acaba; o travesseiro impede; a pele transpira; a nuca empapa. O colchão endurece; os cabelos revoltam; as pernas descruzam; o braço adormece. O estômago embrulha; o pijama incomoda; lá fora é manhã, e a insônia só cresce.

C. Sarah

quinta-feira, 10 de março de 2011

Desfecho

Tão lindas eram as rosas brancas que adornavam seus cabelos pálidos. Olhava-a como quem admira uma arte. Uma mão segurava a dela, a outra traçava a face alva circulando-lhe olhos, testando a maciez das maçãs, contornando-lhe os lábios com uma imensa saudade. As horas passaram, as pessoas passaram e cautelosamente observaram a contemplação ali exposta. Só quando as velas foram acesas, iluminando a moldura de madeira, que se deu conta da branquidão de sua pele, uma estátua de mármore repousando em veludo vermelho. Fria, como o mármore. Logo, chegara a noite e tudo naquele recinto parecia ser feito de gelo. Mais um figurão compareceu cumprindo seu dever social, nem se dera conta de quantos já haviam aparecido. Em porcelana fina era servido o café. Uma mão lhe afagou o ombro oferecendo-lhe o que beber, mas recusou sem retirar o olhar do cetim derramado na sua frente. As memórias vagarosamente foram lhe cercando, um sorriso marfim, um olhar falante, um andar bailarino, coisas que a pertenciam. Altivez, ela também tinha isso. A mente ficou perdida por breves instantes nas lembranças, o murmurinho de vozes o desconcentrou e aí percebera que os rostos que o encaravam agora já não eram os mesmos da manhã. Também notara algo mais, não havia visto uma criança sequer. Claro. Ninguém traria uma criança para presenciar o fim de um anjo. E foi se concentrando em detalhes que não vira desde que entrara no local. Símbolos sacros, a cruz dourada com Jesus Cristo pregado nela lhe chamou atenção, também havia coroas de rosas, faixas, e mais velas. Agora enxergara melhor as pessoas e foi odiando cada uma das faces. Odiando os olhares, odiando os pesares, odiando a presença. E num acesso de puro ódio expulsou a todos, atirou os arranjos, apagou as velas até restar somente a ele, a defunta e a escuridão. Ninguém lhe roubaria aquele momento. O breu foi consumindo o quarto e apenas um feixe vindo da janela aberta iluminava, clareando só o corpo deitado. Por vezes o vento adentrava e balançava a mortalha jogada numa cadeira, era o único movimento visto. O preto passou a cinza e a madrugada foi mais sombria do que a noite. A beleza já estava se esvaindo, a pele ficando arroxeada embaixo dos olhos, e assim como as flores ela parecia mais murcha. A dor apertou seu peito por saber que os vermes a tocariam e a terra a preencheria. Três batidas fracas soaram na porta, não era a morte que viera buscá-lo como pedira, era a hora dela partir. Pedira ao Deus Cristão que o levasse, pedira a tantos deuses, demandou até ao diabo e arrependeu-se na mesma hora. Não era para o inferno que ela iria, mesmo se ele existisse, ela não iria para nenhum lugar ruim. Caronte a daria o melhor lugar na barca. Hades jamais deixaria sua alma vagar nos campos da danação. Ela não esperaria no purgatório. Se tudo isso fosse verdade... Se ele pudesse trazê-la de volta... Se pudesse trocar sua vida pela dela... Mas o que lhe sobrou não foi vida, não suportaria a vida sem ela, e egoisticamente, não suportaria a vida dela sem a sua própria. Uma troca não seria o bastante. Queria ir com ela ao céu, queria ir com ela ao inferno. Queria-a, e só. Assim como os irmãos Castor e Polúx, desejaria a vida no Olímpo, e a suportaria no submundo, se junto dela estivesse, e ficaria satisfeito. A mortalha foi colocada, as alças douradas suspensas, duas fileiras de homens vestidos de preto a carregavam. Véus e mantos de graúnas acompanhavam o desfecho.  O caminho foi curto. O padre foi breve. Não houve choro, não houve discurso. Ele somente observou o movimento do caixão sendo abaixado na profundidade. E mesmo doendo-lhe segurou a pá e sujou a madeira branca esperando que a terra tomasse conta daquele corpo que um dia lhe pertencera.  

C. Sarah   
                                          

segunda-feira, 7 de março de 2011

Memórias de Ícaro



Minha prisão ficou pequena, construção extraordinária para mim não destinada. E que armadilha o destino teceu, a obra incorporou o artista. E eu acabei, também, por me tornar monumento desses becos escuros de saídas incertas, onde o céu, o teto, era o único escape. Mas agora que tenho um imenso azul sob meus pés, agora que aposto corrida com uma gaivota, deixo um rei enfurecido e essas lembranças para trás. Vou me misturando no alvo algodão e respiro mais forte um ar diferente. Eu sinto o vento pressionando meu corpo e de braços abertos o deixo abraçar-me. Outro azul preenche a minha volta e são tantas as formas tingidas de branco, me perco dançando buscando o calor do Sol infantil que brinca de esconder. Eu subo mais alto e tento encontrá-lo juntando-me a ele na brincadeira. Os sonhos que outrora havia eu sonhado parecem tão tolos nessa comparação. Um aviso me cerca: não posso ir tão longe ou minha armadura se desfará. Mas raios de sol, fios de ouro, prenderam-se a mim em força corrente puxando meu peso para acima das nuvens. Tudo era belo, prazeroso até, então o calor tornou-se intenso e a pele queimou contra a armação. Em um segundo não havia mais nada apenas o vento empurrando meu corpo, só que desta vez não tinha abraço nem amarras de fios pra me segurar. Eu fui despencando, cortando o azul, furando o algodão, tão livre do que jamais tivera em sonho. No peito um tambor rachava as costelas enquanto os meus membros agarravam o nada. Ao longe avistei os olhos do artista que me sustentavam mesmo sem poder. E eu desisti correndo para os braços daquele gigante de azuis infinitos para em suas águas meu sonho acabar. 


sexta-feira, 4 de março de 2011

Profecias de Cassandra



Apaixonado e não correspondido o Sol a amaldiçoou. O dom do prenúncio, oráculo acertado, se fez falácia quando nulo tornou-se o dom da persuasão. O Deus ressentido pelo amor regado lançou sobre Cassandra o descrédito que abalava a confiança tida em suas profecias. Dos seus lábios as palavras proferidas verdadeiras eram, mas se ouvidas jamais cridas. Infeliz foi o destino desta sorte, e assim o daqueles que não puseram fé nos presságios alertados. Tróia ruiu em tragédia lastimável. Páris, o irmão, o responsável. Agamenon foi avisado da tramóia organizada no intuito do seu fim, e como sempre, o resultado era esperado, o assassinato consumou-se pelas mãos da esposa infiel. Apolo, deus vingativo, fez em Cassandra terrível desgraça, ás vezes a verdade por todos desacreditada fere mais do que uma mentira tida verídica